terça-feira, 28 de março de 2023

A obra de arte na era de sua reprodutibilidade acadêmica

Nada pior do que arte careta, arte chata, arte antiga, arte cansada, arte de gente morta, vivíssima de corpo e abiótica de espirito e sensibilidade. Nada pior do que arte produzida dentro de uma faculdade. Nada pior do que arte acadêmica produzida sob as rédeas de um déspota que a massa de artistas mortos chama de "professor". 

Os temas são sempre os mesmos, os motivos não mudam, os métodos estão tão engessados na estrutura acadêmica que o que eles produzem é condensado em capsulas e vendido na farmácia sob o rótulo de hemitartarato de zolpidem 5mg. 

A via óbvia de pensamento seria de creditar essa equidade coprófila ao fato de todos os estudantes, enquanto na faculdade, sempre viverem vidas semelhantes em que tudo acontece praticamente ao mesmo tempo e do mesmo jeito. O problema desta visão é que ela confere ao estudante um certa inanição mental injusta. Eu acredito que esse estudante tem a capacidade para se expressar sinteticamente e de forma sensível ao ponto de produzir uma bela obra de arte, o problema é a instituição. Produzir arte à guisa de uma instituição significa produzir arte institucional, e nada pior do que arte institucional.

O meu exemplo favorito (e o único que conheço) de um estudante que produziu algo com valor dentro de uma faculdade foi o Rafael "Pixobomb" que invadiu a Belas Artes da rua Álvaro Alvim (atrio de pseudo-artistas infelizes fadados ao fracasso) com diversos conhecidos pixadores e detonaram uma exposição de arte institucional. Um verdadeiro ato artístico, um excelente "happening"! Prontamente Rafael foi expulso da faculdade e libertado do arcadismo acadêmico.

O que de fato dentro da instituição provoca essa inanição mental? Posso falar por experiência própria. Quando você entra na faculdade de artes seu circulo se preenche de aspirantes a artistas que fazem apenas isso, aspiram. Aspiram um dia poder viver como Roman Polanski tendo orgias em Hollywood e estuprando a própria esposa como um ato de "liberdade sexual". Quando um X só olha pra cima, X não olha para si mesmo e, X, perde sua personalidade na maré da instituição. Robert Pirsig já discutiu de forma muito melhor sobre como a instituição interfere na busca pela qualidade (leia "Zen e a Arte de Manutenção de Motocicletas"). O importante para quem está dentro da uma faculdade é o diploma e o networking porque de fato é para isso que a faculdade serve, e então, a arte se torna isso: O trabalho da faculdade, "Um videozinho que eu fiz pra aula", "Tinha que pintar uns negócios pra aula". E assim esse estudante trai a sua própria sensibilidade em troca do sucesso acadêmico.

A forma de se livrar dessa nuvem preta que assombra qualquer coisa que você produzir é abandonar a faculdade de artes, vá trabalhar, vá viver uma vida normal, conhecer pessoas que pensam diferente de você, converse com pessoas que odeiam seu filme favorito e tente entender, consuma consuma e consuma, com 20 ainda não vivemos o suficiente para sermos artistas, viva e a arte virá de forma natural.

O problema é também severamente social. A necessidade desvairada de pertencer e o medo de ser deixado sozinho são muito presentes dentro das faculdades de arte mas esse é um tópico muito inflamado e sensível que não ouso me aprofundar.

Não ouse discordar, não ouse julgar, não ouse ser honesto e acima de tudo não ouse lembrar os pseudo-artistas que eles nunca serão subversivos dentro de uma faculdade que custa mais de 60 mil reais por ano, eles estão dentro da instituição, eles alimentam a instituição, eles são a instituição, por mais que eles vistam suas diversas mascaras liberais, dentro da instituição você sempre será careta e não existe nada pior do que arte careta.

domingo, 26 de março de 2023

O panóptico nosso de cada dia

Eu não me aprofundei o tanto quanto queria em Foucault e Deleuze mas sei de certo modo que o objetivo do panóptico não é de fato observar os prisioneiros mas sim lembrá-los de que eles estão sendo observados e assim submetidos inconscientemente a uma doutrina de subordinação. Você nunca vê o guarda e algumas eventuais ações do guarda o levam a acreditar que ele sempre te observa.

Quem é o guarda, em qual torre ele fica e quem são os prisioneiros do contexto em que vivemos? Nós definitivamente somos os prisioneiros que embrenhados em uma profunda e inescapável tecnocracia também nos tornamos o guarda. Isso é o básico que qualquer aluno de comunicação que se preze aprende no primeiro semestre de qualquer faculdade decente. Há porém uma discussão pertinente e interessante a ser feita em relação a perduração do controle das instituições.

Quando Assange e Snowden são presos por liberar arquivos confidenciais que demonstram a facilidade na qual instituições clássicas da sociedade disciplinar conseguem espionar o cidadão médio surgem duas revoltas; "Os criminosos não são Assange e Snowden" e "O governo está me observando". Muita força é creditada ao panóptico, se antes se duvidava que uma sociedade como a de 1984 pudesse existir, agora há uma confirmação. Faça um simples exercício de pensamento e tente imaginar o espaço físico necessário para armazenar tudo de tangível que ocorre na internet. Ainda não atingimos esta tecnologia, as agências governamentais não têm esse poder de armazenamento, mas isso não importa, o importante é acreditarmos que o guarda sempre pode nos ver e que o japonês da federal sabe os seus mais íntimos fetiches. 

Quando pessoas são "canceladas" (paralelo cômico com "vaporizadas") porque em 2009 tuitaram uma triste palavra de 5 letras, ergue-se em meio as redes sociais uma enorme torre de vigia e as pessoas passam a se comportar conforme o que é "correto". "Eu ia expressar algo genuíno e real que eu sinto para aqueles que eu conheço mas temo que isso possa acatar no meu desemprego". Essas contribuições recorrentes de usuários agindo dentro do "correto" agregam mais valor ainda a mística da subordinação, "se todos estão agindo assim é porque deve ser mesmo o jeito certo de agir.".

Nós, insignificantes, massa trabalhadora, estudantes e pessoas que apenas aspiram, vivemos a pescar palavras a esmo porque tememos o eco de um martelo que bate apenas no outro lado do vale, nós escutamos esse martelo diariamente ressoando pelas montanhas e de vez em quando ele fica mais forte indicando uma certa aproximação, inevitavelmente ele sempre retorna ao outro lado do vale. Nós, a maioria, cidadãos normais, estamos tão baixos que o guarda teria que pôr a cabeça para fora da torre de vigia para conseguir nos ver. 

Diga o que quiser, compre drogas pelo correio, dirija levemente bêbado (é divertido) e não tenha muito medo porque afinal das contas, somos insignificantes demais para movimentar agencias governamentais. Há um certo solipsismo em pensar que não existam pessoas mais importantes para serem observadas. Isso tudo porém, só vale se você não for importante... e como saber se você é importante? Sendo pego.

sexta-feira, 17 de março de 2023

A fotografia de rua dentro das quadras

A fotografia esportiva é um dos pilares do mito do heroísmo atlético. Voltada para a recordação de grandes feitos físicos ela serve muitas vezes apenas como um testamento à grandeza do atleta e do esporte na qualidade do patológico mérito dicotômico que permeia a mídia esportiva. Assim como os fotógrafos de rua buscam evidenciar a arte do corriqueiro, eu sempre busquei evidenciar a arte do esporte.


Vivi uma longa vida como atleta e nela pude aprender e me esgotar dos muitos pormenores e "pormaiores" que envolvem as competições esportivas, por isso, quando me tornei à fotografia meu interesse não era exaltar o atleta e seus feitos, meu interesse era reproduzir o que eu aprendia estudando Bresson, Winogrand e Ronis (além de Caravaggio, Chirico e Hopper que não são fotógrafos mas muito me influenciaram) a grande diferença foi que Ronis vivia em Paris, Winogrand vivia em Nova Iorque e Eu vivia no basquete.




Quando passei meses fotografando jogos do clube Monte Líbano e orgulhosamente apresentei as fotografias ao meu professor de fotojornalismo tive uma certa epifania em torno do sentido do que eu estava produzindo; O professor criticou minhas fotos pelo fato delas não apresentarem contexto suficiente sobre o jogo que acontecia, quem as via não sabia quem havia vencido, quem estava com a bola ou melhor, "cadê a porra da bola na foto", esse nunca foi meu objetivo, eu não queria ilustrar a manchete de uma casa de apostas, eu queria demonstrar que no esporte há o barroco, há Bresson. O esporte carrega consigo uma capacidade enorme de sintetizar a experiência humana que é deixada à margem da reportagem simplória do vencedor/perdedor.



Assim como eventos corriqueiros das ruas das metrópoles tenham suas nuances e sensibilidades artísticas absortas que são capturadas pelo olhar sensível de um fotógrafo, o esporte também é reduzido aos resultados e desumanizado pela falta de sensibilidade (sistematicamente o negócio midiático passou a favorecer a falta de sensibilidade). O fato é: tudo que é permeado pela experiência e pelo tato humano é passível de carregar uma carga emocional forte porém sutil, cabe a nós percebê-la. A arte e o esporte são exclusivamente humanos.

sexta-feira, 10 de março de 2023

Aqui Jaz

Aqui jaz

Jaz-se-eu de esperar

Jazer-se-á à esperar

Jazeu a esperar

Houve de jazer à esperar

Houve de viver ao aguardo

Ou jaz ou deixa de aguardar

Enfim jazeu de aguardo

A jazer guardou vontade

Jazeu à vontade 

Jaz consigo o que havia de aguardar tanto

Já consigo no reino dos que jazeram

Coleta seus aguardos e há de jazer incompleto

Aqui jaz

Jaz-se-eu de esperar

Jazeu a esperar.

 


A arte e o artista

     Nos tempos atuais em que a população carrega fortuitamente uma patologia do juízo e da opinião ouve-se muito a bizarra frase "separar a arte do artista". Isto é dito de forma tão corriqueira e natural que passou a ser aceitável imaginar a arte como um presente imaculado que surge dos céus fruto de uma gravidez casta.

    Separar a arte do artista surge como um exercício de isenção moral por parte de espectadores covardes que não compreendem de fato o papel da arte na experiência humana. Um exemplo usual é o seguinte: um músico adorado pela massa acumula fama, poder e, eventualmente, alguns processos de abuso sexual e tráfico humano. Automaticamente o peso dos crimes do artista é distribuído entre aqueles que consomem sua arte, então, para se isentarem da culpa por associação, aqueles que consomem dizem altaneiros "sim escuto R Kelly, mas eu separo a arte do artista!".

    A arte é arte de fato porque ela é produzida e, se é produzida é produzida por alguém: um artista. Arte é a materialização sentimental de um artista assim como o azeite é o óleo da azeitona, inexoravelmente não há arte sem artista assim como não há azeite sem azeitona. A arte é compreendida pela sensação e pelo seu contexto (quem e quando) o processo de consumir arte não deve ser possesivo, a arte não é uma faixa que você coloca no seu braço esquerdo e sai marchando pela Champs-Élysées, consumir arte é estar presente em uma galeria de janelas que lhe apresentam mundos e sentimentos terceiros a nossa própria experiência.

   


Arte não é um palavra que indica qualidade, bondade, limpeza e justiça. Pessoas incríveis chanceladas por um Nobel da paz não são automaticamente bons artistas e talvez não consigam produzir nada de valor artístico, pessoas horríveis podem ser artistas incríveis porque talvez são exímios em expressar seus sentimentos horríveis.  Abandone a noção precária de que o artista é um ser humano ungido por Deus para representar a beleza do mundo.

    Separar a arte do artista é trair o seu próprio senso crítico e moral, busque experimentar e ver tudo e saber sempre o contexto do que está consumindo, mas não fuja da experiência por causa das mazelas de quem as criou, leve as mazelas à sua compreensão da experiência. E se o problema é financiar um artista criminoso/problemático: pirateie, mas nunca deixe de experimentar. 

quinta-feira, 9 de março de 2023

Caderno Pautado

jogado sobre a mesa de centro está um impecável caderno pautado com uma capa brilhante feita de couro cor de mogno.

Junto ao caderno estão um bloco de notas e uma variedade de lápis, canetas, tintas, penas e pincéis, minuciosamente organizados.

O bloco de notas está preenchido pelo o que parecem ser testes, cada página uma caneta diferente, um tipo de tinta, uma dureza de grafite, e assim está preenchido.

desenhos, palavras soltas, letras e números.



O caderno, no entanto, está vazio.

Não há nada no caderno além de pautas,

Pautas feitas à mão,

uma por uma,

página por página,

pautas feitas para acomodarem textos grandiosos

Pautas incríveis

porém

Pautas vazias.

Memória fotográfica



No banco do parque


No banco do parque passei minhas férias Tomei o papel das árvores e observei. Vi corredores correndo, vendedores vendendo, e vi João. João corria todo dia pontualmente as 10. Por 12 dias vi João correr Roupas, tênis e ritmos alternados Todo dia as 10 João corria. Nos dois últimos dias não vi João. João está descansando? João machucou o pé? João viajou? João.... morreu? Hoje é meu último dia de férias São 11 horas e ainda não vi João Se João aparecer amanhã O que pensará João da minha ausência?

Visão

    O que eu veria se pudesse ver sem meus olhos? Ver o mundo sozinho, sem mim mesmo. O que eu veria se pudesse ver sem minhas experiências, sem minhas memórias, sem minhas dores, não ver através das lentes danificadas pelo que já passou. O que eu veria? Anos atrás eu tinha uma visão ainda não deturpada de como eu queria seguir minha vida, vivia por ela, horas e horas intermináveis obcecado pela possibilidade, obcecado pelo que eu conseguia ver, não sentia dor, não ligava para amigos ou família afinal a visão era minha e só minha, eles não entenderiam e tempo gasto explicando o que eu via era tempo perdido tentando chegar na inalcançável miragem. Quando eu tive essa visão foi de fato a primeira vez que eu vi algo, eu não tinha a quem responder, eu não tinha a que me doar, eu era cego. Até que um dia eu acordei cego.

    Acordei e haviam retirado a visão de mim e o que restava era apenas a última imagem, a última lembrança, a última esperança de alcançar a visão que tanto eu sacrifiquei para ver. Me encontrei de repente cego, distante de tudo, distante de todos e mais importante; distante de mim mesmo. Eu que havia me construído para o dia que eu finalmente alcançaria a visão, certo de que eventualmente esse dia iria chegar, eu havia me construído a reflexo do que eu via, e então a cegueira me distanciou desse reflexo.

    O que eu veria se pudesse ver? Mais importante, o que eu faria se pudesse ver? Como eu disfrutaria da dádiva da visão se, eu, pudesse pelo menos uma vez ver novamente e poder trocar o que eu vi por último? A imagem da visão não alcançada ainda me persegue, ela preencheu meu repertório, fiz da visão a minha vida e a visão fez de minha vida sua, ela me persegue nos sonhos, nos devaneios e impede que eu veja novamente porque se um dia eu recupero a vista, essa visão seria substituída. 

    Mas e se a visão fosse realmente substituída e fosse embora? Eu sou um produto dessa visão, ela me machuca, mas de certo modo eu sou ela. Se ela for embora eu também vou ou será que fico? Fico em uma nova incansável jornada, cheio de vazios fadados a não serem preenchidos buscando sempre um calço diferente para mais um buraco marcado pela perda da visão. 

    Como seria então, aproveitar das coisas pelo que elas são e conhecer pessoas pelo que elas têm a oferecer não apenas viver constantemente buscando preencher algo. Viver na primeiridade sem tentar alinhar o que sinto com o que sou, distanciando a experiência da impressão. 

    Então, em suma, o que eu veria se minha vida fosse outra? Como vive o outro? Talvez esses questionamentos sejam intrínsecos ao humano e desejar ver como o outro seja utópico uma vez que o outro também não vê. Qual o significado de ver então se não ver pelos próprios olhos? Qual o fator principal da constituição do ser a não ser simplesmente ser? Se um dia eu acordasse com a visão de outro, assim como outrora acordei cego, quem teria sido eu, o que eu carregaria como lembrança de que existo? Eu seria apenas um reflexo de uma visão que pensei ser confortável, que pensei ser mais fácil, que pensei que poderia ser minha. A visão do outro então é inexistente quando se trata da minha construção. Eu não veria nada se não visse com meus olhos porque não mais seria eu.