quinta-feira, 9 de março de 2023

Visão

    O que eu veria se pudesse ver sem meus olhos? Ver o mundo sozinho, sem mim mesmo. O que eu veria se pudesse ver sem minhas experiências, sem minhas memórias, sem minhas dores, não ver através das lentes danificadas pelo que já passou. O que eu veria? Anos atrás eu tinha uma visão ainda não deturpada de como eu queria seguir minha vida, vivia por ela, horas e horas intermináveis obcecado pela possibilidade, obcecado pelo que eu conseguia ver, não sentia dor, não ligava para amigos ou família afinal a visão era minha e só minha, eles não entenderiam e tempo gasto explicando o que eu via era tempo perdido tentando chegar na inalcançável miragem. Quando eu tive essa visão foi de fato a primeira vez que eu vi algo, eu não tinha a quem responder, eu não tinha a que me doar, eu era cego. Até que um dia eu acordei cego.

    Acordei e haviam retirado a visão de mim e o que restava era apenas a última imagem, a última lembrança, a última esperança de alcançar a visão que tanto eu sacrifiquei para ver. Me encontrei de repente cego, distante de tudo, distante de todos e mais importante; distante de mim mesmo. Eu que havia me construído para o dia que eu finalmente alcançaria a visão, certo de que eventualmente esse dia iria chegar, eu havia me construído a reflexo do que eu via, e então a cegueira me distanciou desse reflexo.

    O que eu veria se pudesse ver? Mais importante, o que eu faria se pudesse ver? Como eu disfrutaria da dádiva da visão se, eu, pudesse pelo menos uma vez ver novamente e poder trocar o que eu vi por último? A imagem da visão não alcançada ainda me persegue, ela preencheu meu repertório, fiz da visão a minha vida e a visão fez de minha vida sua, ela me persegue nos sonhos, nos devaneios e impede que eu veja novamente porque se um dia eu recupero a vista, essa visão seria substituída. 

    Mas e se a visão fosse realmente substituída e fosse embora? Eu sou um produto dessa visão, ela me machuca, mas de certo modo eu sou ela. Se ela for embora eu também vou ou será que fico? Fico em uma nova incansável jornada, cheio de vazios fadados a não serem preenchidos buscando sempre um calço diferente para mais um buraco marcado pela perda da visão. 

    Como seria então, aproveitar das coisas pelo que elas são e conhecer pessoas pelo que elas têm a oferecer não apenas viver constantemente buscando preencher algo. Viver na primeiridade sem tentar alinhar o que sinto com o que sou, distanciando a experiência da impressão. 

    Então, em suma, o que eu veria se minha vida fosse outra? Como vive o outro? Talvez esses questionamentos sejam intrínsecos ao humano e desejar ver como o outro seja utópico uma vez que o outro também não vê. Qual o significado de ver então se não ver pelos próprios olhos? Qual o fator principal da constituição do ser a não ser simplesmente ser? Se um dia eu acordasse com a visão de outro, assim como outrora acordei cego, quem teria sido eu, o que eu carregaria como lembrança de que existo? Eu seria apenas um reflexo de uma visão que pensei ser confortável, que pensei ser mais fácil, que pensei que poderia ser minha. A visão do outro então é inexistente quando se trata da minha construção. Eu não veria nada se não visse com meus olhos porque não mais seria eu.

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