Sobre guardar discos.
Tenho um certo problema com o ato de guardar discos, e escrevo na esperança de encontrar alguém que, tendo sofrido desta mesma moléstia do cotidiano, possa servir como companhia para o meu sofrimento desastrado. Uma coisa é ter um problema; outra coisa é compartilhar um problema. Este sentimento de conforto em partilhar aflições é, de fato, uma das poucas coisas boas de morar em São Paulo. Não importa qual o problema que você leva consigo na refrega diária do passeio público, você inevitavelmente se depara com faces derrotadas em todos os cantos. Problemas estampados na face de todas as pessoas confortam a sua face, também derrotada. Os problemas são sinônimos da vida paulistana, e você sente um certo conforto ao pensar que, além de você — um só, indivíduo, 1 —, outras dezenas de milhões de pessoas também estão cheias de problemas.
Mas enfim, sobre guardar discos,
Você acorda em um dia gelado e pintado pelo âmbar claro de um sol enfraquecido pelo inverno — condições essas que te recordam solenemente que metade do ano já passou —, e decide escutar um LP, ato que, em 2025, é quase radical. Parar para escutar um disco inteiro, sem acompanhar a música de uma dessas tarefas mundanas obrigatórias, como lavar roupa, lavar louça, lavar banheiro, lavar o chão, lavar o fogão... Apenas escutar música pelo ato de escutar música. Sem nenhuma ordem aleatória de músicas que não combinam, definida por um algoritmo publicitário desalmado, que compila músicas por palavras-chave para vender o máximo de estímulos e streams. Não! O simples ato “orgânico” de escutar uma sequência de faixas definida pelo próprio músico que as produziu.
Mas enfim, sobre guardar discos,
Você acorda, passa um café e se direciona à vitrola que, é claro, ainda apoia o último disco que protagonizou sua última "revolta" contra as playlists. Ele, porém, não é o disco que você quer escutar; afinal, você tem infinitos discos, e algo dentro de sua cabeça os humaniza e te diz, em tom disciplinar, que você deve aproveitar todos eles. Você então, cuidadosamente e com as mãos sujas de café, pega o disco que repousa sobre o prato giratório, dá uma assoprada nele que, convenhamos, faz mais em dispersar perdigotos do que, de fato, expulsar poeira. Segurando o disco na mão esquerda e com o corpo inclinado para o lado, você leva a ágil mão direita à pilha de centenas de discos para encontrar a capa do LP que precisa ser guardado — ato que seria muito mais rápido se você simplesmente desse um passo para o lado, ao invés de se inclinar, e se tivesse procurado pela capa antes de pegar o disco.
Muitas vezes me pego complicando estas microações insignificantes por simples força absoluta da preguiça, calculando economias insignificantes de energia que, na maioria das vezes, levam a problemas que requerem gastos maiores de energia para serem resolvidos: segurar uma panela enquanto tento, em vão, limpar o fogão com uma mão só ou, então, tentar tirar uma blusa enquanto pedala uma bicicleta e, inevitavelmente, ficar íntimo do duro e abrasivo asfalto.
Mas enfim, sobre guardar discos,
Você encontra a capa e tira de dentro da capa outra capa, nesse caso feita de papel fino. Ao tentar enfiar o disco dentro desta capa cinicamente apertada, de papel aparentemente frágil, você se dá conta de que o disco nunca coube nessa capa e que os efeitos barométricos nos materiais devem estar pregando uma peça em você. Enfim, com muito esforço mental e pouco esforço físico, o disco entra na capa. Em uma situação comicamente sisifiana, para colocar o disco encapado com papel fino dentro da capa de papel mais grosso, as tribulações são as mesmas. Porém, com seu grande espírito de mancebo repleto de vontade, você consegue escalar mais esse píncaro ingente da cordilheira das coisas banais.
Chega, pois, à última das hostes do exército das importunações mesquinhas: o prélio ainda é exatamente o mesmo, mas agora, tendo aprendido com as últimas duas batalhas, você decide enfrentar o problema de outra forma e, utilizando toda sua capacidade de raciocínio, vira a capa de papel mais grosso para baixo, para atacá-la de outro ângulo. E, enquanto você foca em abrir o plástico, o disco desliza das duas capas que já o envolviam e cai, em trajetória graciosa, em direção ao chão... Cai e fica ali girando como um disco de Euler. Gira, e cada rotação é um ataque pessoal às suas decisões.
Seu primeiro instinto, é claro, é pisar em cima dele para fazê-lo parar de girar (afinal, suas mãos estão ocupadas segurando capas e capas e capas de discos). Ele para de girar, é claro, mas uma fulgurante marca de poeira em formato de sola de sapato fica estampada no lado B de Houses of the Holy. O próximo passo, além de desistir, é tirar o disco do chão. Porém, o disco, ao ser pisoteado, ficou preso ao chão por um vácuo que só é quebrado arrastando o disco até algum relevo que permita você levantá-lo por um lado e tirar o pobre pisoteado do chão.
Você então, com muita dor no coração, arrasta o disco, e as vibrações dolorosas da poeira arranhando a superfície do disco são transmitidas das pontas dos seus dedos até as mais profundas áreas de auto-comiseração do seu cérebro. Enfim, você chega até o relevo, levanta o disco, condiciona-o na capa de papel fino, na capa de papel mais grosso e, finalmente, na capa de plástico. Escolhe um outro LP para escutar, tira-o da tríade de capas, posiciona-o na vitrola e pousa a agulha sobre ele com a mais culposa delicadeza.
Um som magnífico toma o cômodo inteiro, te surpreende, te anima, e você esquece da dura batalha que acabara de perder. Busca a xícara de café que acabou de ser passado e, ao dar um gole esperançoso, percebe que, durante esse tempo todo, o café esfriava.
São Paulo, 19-06-2025